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Luciana Barreto Nascimento (Museu de Ciências Naturais / PUC-Minas)

Como foi o início da sua carreira e quais as principais motivações para trabalhar com os anfíbios?

 

Graduei-me em Ciências Biológicas na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em dezembro de 1983. Quando entrei na graduação tinha pavor de sapos, queria estudar dinossauros. Em uma aula prática de Citologia, o professor “me obrigou” a pegar em um sapo e foi a primeira vez que percebi que eles não eram tão “asquerosos” como sempre achei.  Pelo contrário, achei muito tranquilo manipulá-los e observá-los. Assim, no terceiro período, depois de uma atividade de campo da disciplina de Zoologia de Cordados com o Prof. Geraldo Kisteumacher (no Parque das Mangabeiras, em Belo Horizonte), em que pude observá-los no campo, decidi estudar anfíbios. A grande motivação para mim era que anfíbios permitem que você os observe facilmente em campo. Não são necessárias armadilhas ou redes para achá-los, apenas uma lanterna. Um bom ouvido também ajuda bastante, mas isto eu não tenho. Assim, mesmo sendo estimulada para trabalhar com serpentes pelo prof. Geraldo, não houve jeito, me decidi pelos anfíbios. Durante a minha graduação, tive através dele, ao participar de atividades de campo, a oportunidade de conhecer o meu futuro orientador de mestrado e doutorado no Museu Nacional, Dr. Ulisses Caramaschi. Antes de ingressar no mestrado, tive que fazer um “pé-de-meia”, dando aulas nos ensinos fundamental e médio, porque naquela época era muito difícil obter uma bolsa. Ingressei no mestrado em 1987, também com o apoio da minha família, com o propósito de inventariar e determinar padrões de distribuição espacial e temporal de anfíbios anuros do Parque das Mangabeiras, em Belo Horizonte. No final do curso de mestrado, já estava ministrando aulas na PUC Minas e envolvida com a criação de uma coleção de herpetologia para o futuro Museu de Ciências Naturais (MCN). Por causa disto, só ingressei no doutorado em 1999, quando a criação do museu era uma realidade e não apenas um sonho. Nesta oportunidade, além de ter o Prof. Ulisses como orientador, tive a enorme honra de ter o Dr. Carlos Alberto Gonçalves da Cruz como coorientador. Naquele momento, como curadora de coleção, me enveredei para a taxonomia, com o objetivo de revisar os grupos de espécies do gênero Physalaemus. O maior desafio seria o volume de material a analisar, sendo que para algumas espécies havia pouco material disponível. Entretanto, sempre encarei os desafios como motivações, mas não seria possível superá-los se não fosse a ajuda dos meus orientadores, de colegas e amigos, da minha família. Eles fizeram da minha estada no Rio de Janeiro uma grande oportunidade de crescimento profissional e pessoal. Terminando o doutorado, ingressei como professora no curso de Pós-graduação em Biologia de Vertebrados, mantendo a função de curadora da coleção de herpetologia do MCN na PUC Minas e professora da graduação.

 

Quais foram as principais conquistas da sua carreira? Qual é o seu trabalho que considera mais importante?

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Minha grande conquista é poder fazer aquilo que gosto: estar dentro de sala de aula; contribuir de alguma forma para conservação de um grupo de vertebrados que tenho afinidade; fazer grandes amigos no meio profissional; produzir e divulgar conhecimento. Entretanto, se tivesse que enumerar uma conquista maior, seria ter contribuído para a criação, organização e desenvolvimento do Museu de Ciências Naturais da PUC Minas. Todas as vezes que chego de manhã ao museu e vejo filas de crianças completamente eufóricas para ver dinossauros, baleia, preguiça gigante, falando sem parar, com os olhos brilhando, sinto realmente que fiz alguma coisa importante e isto faz valer todos os momentos de espera que passamos até ter o museu funcionando. Isto se completa quando algum pesquisador solicita algum material e podemos auxiliá-lo com empréstimo ou através de suas visitas.  Sabemos hoje mais do que nunca qual a importância de museus e suas coleções. Os museus geram conhecimento, sentimentos, sonhos e estes ganham corpo através de imagens, sons, cores e formas. E o mais incrível: podem atingir todos os públicos. Poder participar disto, é um privilégio. Não acredito em um bom pesquisador, sem que este seja um bom educador. Assim, ajudar na formação de pessoas é também uma das minhas grandes conquistas. Talvez, tenha conseguido fazer isto bem, porque muitos dos meus ex alunos são grandes amigos hoje. Muitos deles me superaram, tanto como pesquisadora, quanto como educadora, e isto, com certeza, é uma grande conquista – abrir caminho para que outros realizem mais do que você.

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​Quais foram os principais desafios? Ser mulher fez alguma diferença com relação a eles?

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Não foi fácil me formar como bióloga, tentar ser pesquisadora, estudando anfíbios, em um estado, e até mesmo um país, em que não eram comuns mulheres zoólogas na década de 80.  As pessoas sempre olhavam de forma estranha quando eu falava o que fazia, mas não sei se mudou muito. Respondia perguntas comuns do tipo "para que isto serve", "isto é capricho e não trabalho", "gasta dinheiro com isto". Mas sempre pareceram entender quando eu explicava, ou então fingiam. Tive problemas como outras pessoas por questões financeiras para fazer o mestrado. Meu pai foi sempre um incentivador para que eu continuasse estudando, mas os recursos financeiros para me manter em outra cidade, sem bolsa, foram realmente um desafio para a nossa família, mas com o apoio dela, conseguimos nos virar. No doutorado foi mais fácil, pois a PUC Minas me auxiliou através do programa de Capacitação Docente. O grande desafio foi conciliar as atividades do doutorado (aulas, atividades de campo, atividades de laboratório) com minhas atividades na universidade. Entretanto, pude contar com ajuda na realização de ambas. Tive problemas no campo por ser mulher, mas sei que a minha altura e a minha voz, também alta, ajudaram um pouquinho (rsss....). Certa vez, no final das atividades de campo para o mestrado no Parque das Mangabeiras, eu e uma colega botânica, que me auxiliava na descrição das áreas de amostragem, fomos abordadas por um homem armado que nos manteve amarradas. Apesar de não ter expressado suas intenções, sabíamos o risco que corríamos. Felizmente, fomos mais espertas e conseguimos nos soltar e buscar ajuda, saindo desta sem nenhum arranhão. Na época, poucos acreditavam que pudéssemos ter sido espertas o suficiente para que nada acontecesse, porque outras mulheres tinham sido vítimas deste mesmo homem. Em outra ocasião, fui para campo com uma aluna e precisava chegar numa área particular para coletar anfíbios. Sem GPS, pois não era disponível na época, fomos aconselhadas a buscar ajuda em um escritório da empresa a qual pertencia a área. Fomos recebidas por um dos diretores que nos mandou retornar à “Belo Horizonte e ir fazer compras no shopping”, pois “o local não seria acessível para duas mulheres em um fusca”. Conclusão, com outras indicações, conseguimos ir, coletar e denunciar o tal diretor pela falta de préstimo ao serviço pelo qual tinha sido contratada. Entretanto, acredito que os demais desafios tenham sido os mesmos pelos quais muitos outros passaram. Sempre tive muita sorte: a de ter bons amigos, bons professores, bons orientadores, bons coordenadores, excelente família. Com isto, os desafios, que se figuram como tal no início, logo, logo, se dissiparam e passaram a serem estímulos.

 

Que experiência, dica ou conselho você gostaria de passar para aqueles que estão começando a estudar os anfíbios, principalmente para as mulheres?

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Em qualquer carreira é preciso gostar do que se faz. Os anfíbios são animais surpreendentes e não é difícil se apaixonar por eles logo de início. Entretanto, sapos não são príncipes, ou seja, não são óbvios. O estudo de anfíbios, assim como qualquer outro exige dedicação, mas está cheio de desafios. No campo trabalhamos a maior parte do tempo à noite, no laboratório também trabalhamos nos finais de semana. Precisamos nos organizar e, principalmente, focar, porque as exigências sobre nós são grandes. Existem estudos que demonstram isto. Nós mulheres somos maioria na graduação, mas não somos maioria com doutorado concluído. Temos ainda menos artigos publicados, menos bolsas de produtividade, menos projetos financiados. Nossa jornada de trabalho é dupla, independentemente se temos filhos ou não. Nossa capacidade como pesquisadoras constantemente é questionada.  A situação mudou da época que comecei para a atual e, com certeza, somos todas responsáveis por esta mudança. Entretanto, o Brasil, e porque não o mundo, têm demonstrado sinais de retrocessos no sentido da nossa participação em todos os setores. Assim, temos que, mais do que nunca, fazer valer a nossa voz. Precisamos estar presentes em todas as instâncias, impondo nossa presença, mas de forma responsável e participativa. Nunca foi fácil fazer ciência neste país, nem como homem nem como mulher, mas temos provas que para nós o caminho sempre foi mais árduo. Mas, temos uma geração atual forte, e com muita capacidade de produção, de estudiosas de sapos. Espelhem-se nelas, mas criem os seus próprios caminhos. Novos caminhos levam a novos sonhos e, com eles, o desejo de superar desafios. Não esqueçam de Bertha Lutz, uma herpetóloga que lutou pelos direitos das mulheres em uma época em que isto seria inimaginável. Se hoje temos o direito de voto, de protesto, de fazer coisas “poucos comuns” como estudar sapos, devemos, em grande parte, à sua garra e determinação. Para fazer valer a nossa voz, temos que trazer à tona a Bertha que existe dentro de cada uma de nós e conquistar nosso espaço com sabedoria e, principalmente, com solidariedade umas com as outras. O que posso garantir é que independentemente das dificuldades, vale a pena. Momentos como este, de receber um prêmio com o nome dela, de ser reconhecida pelos seus pares, faz tudo parecer mais fácil. É gratificante, me honra muito e me faz crer que tomei o caminho certo. Os anfíbios precisam de mais mulheres dedicadas a compreendê-los e desvendar os mistérios que ainda guardam em relação à sua biologia, morfofisiologia, ecologia e evolução. Precisamos, para isto, de mulheres que valorizem mulheres e que estejam dispostas a muita dedicação e determinação.

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Entrevista publicada em Outubro/2018.

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Ir para a próxima entrevista (Marilia Teresinha Hartmann).

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