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Gilda Vasconcellos Andrade (Universidade Federal do Maranhão)

Como foi o início da sua carreira e quais as principais motivações para trabalhar com os anfíbios?

 

Meu sonho de criança era estudar comportamento animal em ambiente natural. Assim, em 1979 iniciei o bacharelado em Ciências Biológicas na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e no segundo período procurei estágio na zoologia. O professor Adão José Cardoso me apresentou os anfíbios, pelos quais me apaixonei. A beleza das espécies, poder chegar tão perto para observar o comportamento, os cantos, os modos de defesa e reprodução, tudo me atraiu. Ao longo do estágio adquiri experiência de pesquisa e auxiliei na organização e na ampliação da Coleção de Anfíbios (ZUEC), viajando principalmente para Minas Gerais. Como resultado, publiquei cinco artigos científicos versando sobre descrições de espécies de anuros incluindo girinos, levantamento de espécies, biologia e ecologia de anfíbios. Esses trabalhos foram publicados entre 1982 e 1991, em função da lentidão na publicação de artigos que ocorria naquela época pelas revistas brasileiras.

 

Ainda na graduação surgiu a minha segunda paixão, a ecologia. A UNICAMP foi uma das precursoras da linha de ecologia evolutiva no Brasil. Assim, quando recebi meu diploma de graduação em 1982, eu já estava aprovada para fazer o Mestrado em Ecologia na UNICAMP. Os quatro cursos de campo, além da experiência prática no desenvolvimento de projetos ecológicos, continuaram consolidando o meu conhecimento biogeográfico iniciado na graduação. Conheci o Pantanal e novas áreas de Cerrado, Mata Atlântica, ecossistemas litorâneos e Mata Amazônica. Ainda sob a orientação do Adão, abordei na dissertação a ecologia de anfíbios (adultos e girinos) em uma poça com extrema redução de tamanho na estação seca. O trabalho foi original, especialmente pelo estudo da ecologia larvária, praticamente desconhecida para a região neotropical.

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Ao término do mestrado eu procurei o professor Dr. Woodruff W. Benson, não herpetólogo, mas com uma sólida formação da escola americana em ecologia e um entusiasta de trabalhos experimentais. E foi assim que continuei na UNICAMP, iniciando o doutorado em agosto de 1987 com novo orientador, para iniciar uma linha inédita no Brasil de trabalho ecológico experimental com girinos. Em função da minha contratação na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) em janeiro de 1988, foi necessário um período para o conhecimento dos anuros no Maranhão e das possíveis áreas de trabalho. Após um tempo eu me desliguei do doutorado e religuei para defesa apenas em 1995. Abro parênteses para a minha vida pessoal, para relatar que nesse período também ocorreram as duas melhores produções da minha vida, meus filhos, Bruno, nascido em 1989, e Ricardo, em 1993. A tese foi sobre a história de vida de Physalaemus cuvieri e envolveu uma parte experimental com girinos em poças artificiais.

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Bem mais recentemente (2006-2007,) realizei um pós-doutorado no Departamento de Ecologia e Conservação da Vida Silvestre da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, onde pude me aperfeiçoar em análises ecológicas voltadas para a conservação.

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Voltando à minha contratação, em 1987 abriram concursos públicos para várias áreas no Departamento de Biologia da UFMA. Na ocasião eu e meu marido, Nivaldo, botânico, estávamos terminando o Mestrado e procurando concursos em uma mesma Instituição. Nos inscrevemos e fomos aprovados, assinando contrato em 1988. Foi um início muito estimulante, com todo o grupo recém-contratado atuante e empolgado por implantar as suas linhas de pesquisa e os seus laboratórios. Ao final do primeiro ano, eu já estava envolvida com orientação, projetos de pesquisa, reforma curricular e outras atividades que se projetavam para os vários anos seguintes.

 

Quais foram as principais conquistas da sua carreira? Qual é o seu trabalho que considera mais importante?

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Ao longo da minha carreira eu passei por diferentes fases em que ocorreram importantes conquistas, que não foram só minhas, resultantes de muito empenho pessoal e integradas com muitos colegas e estudantes. Destaco:  

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- Formação de pessoal - vejo como grande conquista meus ex-alunos, hoje, biólogos, mestres ou doutores, atuando em instituições diversas, especialmente no Maranhão, Piauí e Amapá. A desigualdade regional que temos no nosso país é imensa, e considero minha contribuição muito relevante na tentativa de diminuir as diferenças. Eu contribuí diretamente na formação de pessoal qualificado que está hoje inserido em todos os níveis de ensino, do básico ao superior, nos diferentes órgãos ambientais, na esfera pública, não-governamental e privada. Na fase inicial da minha carreira eu focava nos levantamentos de espécies nos diversos ecossistemas que ocorrem no Maranhão e nos estudos de história natural, orientando estudantes da graduação. Até os anos 2000 eu era a única herpetóloga em um raio de aproximadamente 1000km. Eu investia em uma formação de qualidade e preparava e estimulava os estudantes para seguir para o mestrado fora do Maranhão, pois não havia pós-graduação na nossa área. Junto com meus colegas do departamento de biologia, investimos muito na qualidade de ensino e pesquisa do curso de Ciências Biológicas e na capacitação continuada de todos os docentes. Dessa forma, conseguimos manter nossos alunos com uma ótima formação e, os que seguiam para pós-graduação, se inseriam sem problemas, mesmo em programas muito competitivos.

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Acompanhando a degradação ambiental que acometia o Maranhão, passei a me preocupar mais com a conservação da herpetofauna. No final da década de 90, passei a investigar questões sobre a diversidade em pequenos fragmentos de vegetação nativa em integração com pesquisadores de outras áreas, tanto em ambientes nativos quanto urbanos. Simultaneamente, foi a fase em que passei a atuar, juntamente com meus colegas, para a criação do programa de pós-graduação em Biodiversidade e Conservação, conquista ocorrida em 2005. Em 2008, preocupada com os efeitos da degradação ambiental, especialmente da contaminação do ambiente aquático e seus efeitos sobre as populações dos anfíbios, procurei pesquisadores da química. A parceria resultou na formação conjunta de diversos estudantes da graduação e pós-graduação, biólogos e químicos. Outra frutífera parceria, iniciada em 2003 na UNICAMP para estudos de citogenética de anuros foi muito relevante para o fortalecimento da nossa pós-graduação, através de um projeto (Casadinho/CNPq) que eu coordenei (2008-2011). Assim, eu investi muito no curso de pós-graduação, como orientadora, docente e coordenadora, sempre acreditando muito na importância da formação dos estudantes. 

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Mas, ainda faltava a formação local de doutores e conquistamos parcialmente esta meta apenas em 2012, através da nossa participação na rede Bionorte (Rede de Biodiversidade e Biotecnologia da Amazônia Legal). Nessa época, eu participava da rede de pesquisa “Girinos do Brasil” (SISBIOTA 2010-2014), coordenando um dos cinco projetos dessa grande rede nacional, a que integrava diversos pesquisadores do nordeste. Esta rede de pesquisa promoveu um expressivo avanço no conhecimento da diversidade, morfologia e ecologia de girinos em cinco biomas, e formou muitos estudantes. Eu incluí a minha primeira orientanda de doutorado nesta rede, com informações do Amapá. A carência regional de mestres e doutores ainda persiste. Mas realmente é uma conquista ver meus ex-alunos, biólogos, mestres ou doutores, espalhados e atuantes em toda essa região de tão baixo IDH do nosso país, contribuindo para elevar o nível de educação, da qualidade ambiental e, muitos deles, do conhecimento e conservação da herpetofauna.

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- Criação de infra-estrutura para trabalhos experimentais – no meu doutorado iniciei uma linha inédita de trabalhos ecológicos experimentais com girinos no Brasil. Eu simulei poças artificiais utilizando 42 caixas d’água de 1000 litros. Desde a minha tese, insisti por anos até conseguir um espaço na UFMA e recursos (FINEP) para construção e instalação de 50 tanques artificiais. Os tanques ficam atrás do prédio da biologia e só recentemente eu consegui cercá-los para evitar que pessoas transitem na área durante os experimentos. Uma grande conquista, vocês nem imaginam!!! Ao longo dos anos consegui também uma sala para experimentos controlados com os girinos, atualmente com controle de temperatura, luz e equipamento para medir parâmetros de água. A sala é isolada das outras salas que também compõe o meu laboratório, onde se trabalha com material fixado, com lupas e câmeras acopladas e computadores. Muita coisa para uma universidade em que muitos professores nem sala tem. Equipamentos foram adquiridos também pelo programa do mestrado para os laboratórios parceiros da química para as análises de água. Estudamos o efeito de agrotóxicos, de hormônios (etinilestradiol) ou do bisfenol A sobre girinos. Outros tipos de pesquisa também foram realizados, como avaliação de efeitos de densidade, quantidade de alimento e uso de microhabitat. Assim, é possível a investigação de questões com abordagens complementares no campo, nas poças artificiais e em aquários. Recentemente, recebi pela primeira vez um aluno externo, ex-aluno de mestrado, que faz doutorado na Universidade do Porto, para fazer um experimento em parceria no meu laboratório. Os tanques também podem ser utilizados para outros tipos de estudos. Por exemplo, recentemente os utilizamos para um estudo de comportamento de lagarto, isolando indivíduos de diferentes populações e realizando experimentos. As pesquisas integradas com testes de hipóteses em ambientes experimentais com base em dados de campo são sem dúvida as que sempre mais me estimularam.

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- Criação da Coleção de Herpetologia da Universidade Federal do Maranhão - Iniciei a Coleção de Herpetologia da Universidade Federal do Maranhão (HUFMA) em 1988, logo que cheguei na Instituição. No primeiro ano foram depositados cerca de 500 exemplares na Coleção, mas pela total falta de apoio institucional, ou seja, ausência de auxiliar técnico para manutenção, infraestrutura e material de consumo para armazenamento de um acervo crescente, optei pelo depósito mínimo de exemplares para referência. Ainda assim, ao longo desses 30 anos acumulou-se um acervo de répteis (squamatas) e anfíbios cuja maior representatividade é de espécimes provenientes do estado do Maranhão. Neste acervo estão incluídos os topotipos de Amphisbaena ibijara, Elachistocleis bumbameuboi e Rhinella gildae, exemplares de áreas ecotonais e de extremos de distribuição geográfica, importantes para estudos zoogeográficos. Nos últimos anos, com o apoio da FAPEMA e do CNPq, foi possível retomar um crescimento modesto do acervo e iniciar a coleção de girinos. A coleção HUFMA tem sido depositária de exemplares da herpetofauna coletados em consultorias realizadas no Maranhão por terceiros mediante autorização e licenciamento do IBAMA. O banco de tecidos ainda é pequeno e recente. Há ainda os exemplares da herpetofauna sem dados de registro, que são utilizados como material didático. Durante todos esses anos, a coleção atendeu pesquisadores e alunos de pós-graduação deste e de outros Estados. A coleção está inserida no meu laboratório, Laboratório de Herpetologia e Ecologia aplicada à Conservação. Ocupa um espaço climatizado de aproximadamente 10 metros quadrados, acomodada em armários deslizantes. Conta com uma sala de apoio, com lupas e lupas com câmeras acopladas. Há previsão de mudança para uma sala maior no prédio novo do Departamento de Biologia, que se encontra em construção, com previsão de entrega há quatro anos atrás. Sim, isso mesmo, atrás, junto com todo o meu laboratório novo!!! Ainda bem que nunca fui de esperar para concretizar minhas ações!!!

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- Criação do Museu Virtual de Herpetologia do Maranhão – Ao longo das pesquisas sobre contaminantes, detectamos agrotóxicos de uso proibido no Brasil em corpos d’água utilizados por anfíbios. Observamos o uso inadequado dos agrotóxicos por pequenos agricultores, o uso de frascos de agrotóxicos como jarras de água para beber e até o uso de agrotóxicos na pele como repelentes de mosquitos! Também observamos constantemente crianças destruindo ninhos de espuma de rãs, cobras sendo mortas e a destruição de ambientes de reprodução de anuros. Essas e outras situações me levaram a acoplar trabalhos de extensão junto às comunidades onde desenvolvemos nossas pesquisas e escolas. A ideia principal foi favorecer a conservação da herpetofauna e do ambiente e, portanto, melhorar a qualidade de vida das pessoas. Assim, em 2012 iniciei o projeto “Herpetofauna: Conhecer para Conservar”.  Conquistamos o apoio da comunidade e a mudança de comportamento especialmente das crianças. Os próprios moradores de comunidades vizinhas solicitavam que atuássemos na comunidade deles também. Assim, para atingir mais pessoas, resolvi construir o “Museu Virtual de Herpetologia do Maranhão”, com informações para estudantes e professores de todos os níveis, pesquisadores e público em geral (http://herpetologiaufma.wixsite.com/museuherpetoufma). No Museu Virtual agregamos informações acumuladas ao longo desses anos todos de pesquisa, incluindo informações sobre a Coleção de Herpetologia da UFMA (HUFMA).  

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​Quais foram os principais desafios? Ser mulher fez alguma diferença com relação a eles?

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Ao longo do meu estágio na graduação, eu, paulistana típica que nunca tinha acampado, tive primeiramente que sobreviver ao primeiro acampamento com o Adão na primeira caçada de sapo. Ser mulher fez diferença? Acho que sim! Os rapazes que estavam com o Adão ficaram com tanta pena de mim e da outra menina, pois estávamos encharcadas após ter entrado no riacho para catar perereca, morrendo de frio na serra mineira, sem uma muda de roupa, sem cobertor na nossa barraca, que nos deram um cobertor extra que eles tinham. Assim, aprendi a acampar (e a caçar sapos). Em relação às minhas escolhas, nunca me preocupei com o fato de ser mulher e se isso iria fazer diferença. Eu simplesmente sempre fiz o que eu quis fazer, o que eu achava certo e o que eu gostava de fazer. Talvez pelo histórico familiar... 

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Quando eu cheguei no Maranhão, eu tinha vindo de um grande centro, onde eu tinha toda a infraestrutura para trabalhar, estava rodeada de colegas, professores, pesquisadores experientes para trocar ideias a qualquer momento. De repente eu não tinha especialistas na minha área para conversar, não tinha equipamentos, faltava bibliografia! Essa falta afetou muito minha produção, e o isolamento geográfico ocorreu em uma época em que não havia internet. Como é recente o Portal da Capes!!!

 

Quando eu cheguei eu não tinha laboratório e dividia uma sala com outros dois colegas. Mas fui me estabelecendo, conseguindo meus espaços. Senti mais problemas por ser de fora do que por ser mulher. Diziam aos meus alunos que eu voltaria para São Paulo, para que não iniciassem trabalhos comigo. Mas, houve um caso relacionado ao fato de ser mulher. Tentaram internamente me tirar da coordenação de um programa de tutoria de alunos da CAPES porque eu iria entrar em licença gestante, embora eu tivesse combinado com as alunas que eu manteria as atividades. Eu precisei brigar para permanecer, e consegui. Acho que o grande desafio foi atravessar todos aqueles anos formando pessoal, mesmo nos períodos sem recursos e sem infra-estrutura. 

 

Que experiência, dica ou conselho você gostaria de passar para aqueles que estão começando a estudar os anfíbios, principalmente para as mulheres?

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Se estiver em um grande centro, ou próximo a ele, aproveite ao máximo. Não se acomode com a facilidade do pesquisador ao seu lado, pois um dia talvez você esteja em algum lugar em que não tenha ninguém tão perto para consultar. Aprenda a integrar. Cada vez mais os estudos integrados são necessários e se complementam. Integrar não é juntar pedaços que cada um trabalha isoladamente. É importante o trabalho conjunto desde a concepção, discussão das ideias, de todo o delineamento. Acredite no seu potencial e faça o que você gosta de fazer. Não descuide da segurança. Não ande sozinha(o) no campo. Se ainda não sabe, aprenda a dirigir, a nadar e a usar o Programa R.

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Entrevista publicada em Outubro/2018.

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Ir para a próxima entrevista (Luciana Barreto Nascimento).

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